O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte

 

Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte, é um ótimo exemplo do quanto uma boa direção pode transformar uma premissa simples em uma verdadeira obra-prima. O longa é uma adaptação da peça de teatro de Dias Gomes, escrita dois anos antes, e tornou-se o primeiro filme brasileiro a ganhar Palma de Ouro no Festival de Cannes. 

Zé, interpretado por Leonardo Villar, é um fazendeiro pobre, sem ambição e com uma fé inabalável. Seu melhor amigo é um burro chamado Nicolau. Em certo momento, Nicolau sofre um acidente e Zé tenta salvar o animal. Então, ele recorre a um terreiro de Candomblé e faz uma promessa para Iansã (ou Santa Bárbara no catolicismo): se ela salvar Nicolau, ele irá caminhar até a igreja da santa, carregando uma pesada cruz em seus ombros. Com sol ou chuva, a promessa irá se cumprir. E ele tenta. 


Igreja do Passo, uma das mais antigas da capital baiana está localizada no centro histórico de salvador.

Zé e Rosa, sua esposa, interpretada por Glória Menezes, partem em uma peregrinação para pagar a promessa. Quando chegam ao destino, eles acabam conhecendo padre Olavo (Dionísio Azevedo) e contam a história envolvendo o burro Nicolau e a promessa de Zé. Para a surpresa do casal, o padre, que deveria ser a figura máxima de bondade e compreensão, não aceita que Zé pague o que prometeu. Tudo o que o simples peregrino deseja é entrar na igreja com a cruz. No entanto, por ter ido a um terreiro de candomblé, não é aceito pela igreja católica. Zé escuta do padre que é um pecador, que fez pacto com forças malignas e que sua promessa não vale de nada – não para o catolicismo. Importante falar da forma como acontece o encontro entre esses personagens. Em um primeiro momento, a câmera coloca os dois em igualdade. Eles estão se conhecendo e são filmados em um mesmo nível (foto 1). Após a revelação de Zé sobre a origem da promessa, a mise-en-scène estabelece uma hierarquia (foto 2). 
Foto 1.
Foto 2.

A igreja está sempre reafirmando a sua superioridade. O padre que não aceita nenhum outro tipo de fé. Neste caso, a fé ardente e verdadeira do humilde fazendeiro. Um padre que não acredita em milagres e em promessas, apenas no poder a ele concedido. Zé, sempre na parte de baixo da escadaria, revela a sua humildade pura e não abre mão dela nem quando repórteres aproveitadores querem transformá-lo em um ídolo. Ele não tem segundas intenções. Quer entrar na igreja, cumprir sua promessa e ir embora. Enquanto o padre tenta convencê-lo de que é um pecador, a mídia tenta vendê-lo como o próximo messias. Zé realmente crê que tem muitos pecados e que todo castigo é merecido. Contudo, em um universo em que todos parecem tão corrompidos e usam a religião como uma carapaça vazia, ele é o único que apresenta traços verdadeiramente cristãos. Diante da algazarra que acontece nos entornos da igreja, o comerciante local tenta tirar vantagem da situação, o poeta quer vender sua arte e outros estão preocupados com propaganda política. 

A igreja com os seus valores literalmente invertidos.

Não apenas os desconhecidos trazem em si a demonstração do pecado. Rosa, a esposa de Zé, também cai em tentação e o trai com Bonitão, interpretado por Geraldo Del Rey. Então, a mulher, vendo toda a desgraça que se passa na vida do marido, quer se redimir. Não de forma genuína, mas a partir da pena. Ela não aguenta mais a vida miserável que ambos levam e que pode piorar. Ao contrário dele, ela não possui essa fé inabalável. Eles traçam caminhos opostos no jeito de encarar a situação. Quando ela é tomada pela culpa e desespero, se rende. Mas mesmo assim, eles não estão na mesma sintonia. 

Rosa escorada na cruz: tentativa de pagar seus pecados.

O Pagador de Promessas mostra o Brasil como ele é (mesmo que seja um filme de 1962). Pessoas diferentes, diversas religiões, rituais e miscigenação. As ialorixás (mães de santo) cantam, enquanto se escuta o berimbau, os meninos fazem capoeira e uma loja tenta vender produtos em oferta. Aos poucos, a multidão começa a apoiar Zé, apesar de não ter participação ativa na escolha da igreja. Em um momento de irritação, o padre tenta fazer as pessoas ficarem quietas, tocando o sino do santuário. Mas nem o mais alto dos sinos iria calar a voz do povo. Afinal, foi assim que o Brasil foi construído, e assim segue até os dias atuais. A igreja e seus dogmas não conseguiram acabar com a fé de Zé.


O PAGADOR DE PROMESSAS (1962)
Direção: Anselmo Duarte
Elenco: Leonardo Villar, Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Norma Bengell, Dionísio Azevedo.
por:Júlia Pulvirenti

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